O acidente que interditou os P-16 Tracker

Leandro DantasHistória da aviação militar Brasileira e do mundo.

· ACIDENTE COM A AERONAVE GRUMMAN P-16 7017 _ Ações de um Comandante

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Uma importante ação de um comandante é proporcionar constante treinamento aos seus comandados, de modo a capacitá-los para a execução de suas atividades específicas. Por isso, durante o período em que comandei a Base Aérea de Salvador, promovi periodicamente a realização de exercícios que simulassem situações de emergência e contribuíssem para a melhor habilitação dos diversos setores daquela Base Aérea. Esses exercícios eram feitos em dias variados e sem aviso prévio. No dia 3 de junho de 1988, sexta-feira, escolhi como tema a ocorrência de um grave acidente com um avião caído na pista de táxi, com tripulantes e passageiros feridos. Foi acionado e testado todo o sistema de emergência da base e do aeroporto. Para criar um clima de veracidade, um P-95 j 48 do 1º/7º GAv simulou o avião acidentado, e soldados do Batalhão de Infantaria fizeram o papel dos feridos, bem como ajudaram os bombeiros no resgate das vítimas. Conforme o plano existente, na simulação, os feridos graves foram levados em ambulâncias para o Hospital Roberto Santos, principal Pronto Socorro de Salvador, e os feridos leves foram conduzidos para o Esquadrão de Saúde da Base e para o Serviço Médico do Aeroporto. No dia seguinte, sábado, às 7h20, recebi em casa um telefonema do oficial de operações da base, informando-me que um avião P-16 do 1º Grupo de Aviação Embarcada tivera uma pane após a decolagem e caíra nas proximidades da estação de passageiros do aeroporto. Segundo ele, o acidente tinha sido muito grave e certamente havia feridos, talvez até mortos entre os tripulantes.

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Orienteio oficial de operações no sentido de realizar todas as ações do treinamento do dia anterior, pois ainda não tinha sido efetuada a passagem de serviço, prevista para 8h, e a equipe que tinha participado da simulação ainda estava na base. Em seguida, telefonei para o Cap Médico Ferraz, comandante do Esquadrão de Saúde, excelente oficial e hábil profissional. Disse-lhe para mandar um médico do nosso efetivo ao Hospital Roberto Santos e tomar providências para o necessário apoio aos feridos leves no âmbito da base. A seguir, parti para o local do acidente. Ao chegar lá, com satisfação, verifiquei o grande valor do treinamento da véspera. Um dos pilotos, o Ten Marcelo Sade, ficou gravemente ferido, sendo imediatamente transportado para o Hospital Roberto Santos. O motorista da ambulância e o enfermeiro que o acompanhou tinham participado da simulação do dia anterior. Os outros três tripulantes tiveram ferimentos leves e estavam sendo medicados no Esquadrão de Saúde da base. Ressalto aqui a importância de constantes treinamentos e o velho ditado: “só se faz bem na guerra o que se treina na paz”. Segundo a investigação do acidente realizada pelo Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (CENIPA), houve perda de controle de voo por pane no rudder assist (auxiliar do leme). Cabe destacar os excelentes serviços prestados à Força Aérea e à aviação civil brasileira pelo CENIPA. As investigações de acidentes aeronáuticos por ele coordenadas e realizadas são primorosas, e os relatórios finais elaborados contêm precisas recomendações, voltadas para a prevenção de futuros acidentes. Na época, o Ten Marcelo Sade tinha apenas 241 horas de voo e pouquíssimas no P-16. Voava na condição de aluno. O instrutor era o Cel Rômulo Mota de Freitas Costa, um dos mais experientes pilotos da aviação de patrulha. Com quase 7.000 horas de voo e com cerca de 2.000 horas na aeronave P-16, foi comandante do 1º Grupo de Aviação Embarcada, realizou mais de 1.200 pousos em navio-aeródromo e destacou-se como Oficial Sinalizador de Pouso (OSP), qualificação obtida por poucos no âmbito do grupo. O OSP era selecionado dentre os mais versáteis pilotos de aeronaves que operaram em porta-aviões. Do convés, ele orientava o piloto durante o pouso, de modo que ao tocar na pista, o avião enganchava-se num dos cabos do sistema de parada, sendo recolhido com absoluta segurança. Para tanto, o OSP tinha de avaliar as características de cada aproximação, o movimento do navio, as condições de vento e outros fatores. A sua atuação revestia-se da maior importância, principalmente nos pousos noturnos, em razão de a pista do porta-aviões ter reduzidíssimas dimensões e o P-16 ser um avião complexo, voltado para missões de patrulha e para a guerra antissubmarino. Dependendo da missão, ele decolava com torpedo ou bomba de profundidade, sonoboias, marcadores de mar e foguetes. As noticias do Ten Sade vindas do hospital não eram boas. Ele estava grave e necessitava de sangue O negativo, cujo estoque estava baixíssimo no Hospital Roberto Santos. Os portadores deste tipo de sangue são doadores universais, ou seja, podem doar para pessoas de todos os tipos de sangue, mas só podem receber O negativo, de difícil obtenção. Além de determinar o levantamento imediato dos militares da base, com esse sangue, telefonei para as residências dos comandantes do Distrito Naval, da Região Militar, da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros. Com as desculpas por comunicar-me com eles num sábado, disse que precisava de doadores de sangue O negativo para salvar a vida do tenente acidentado. Graças a essas providências, foi possível abastecer o banco de sangue do hospital, e o tenente fez a primeira cirurgia, com a necessária transfusão de sangue. Começava a batalha para salvar sua vida. Por volta das 19h, recebi mais um telefonema do Cap Ferraz. O tenente estava com hemorragia e seria submetido a uma laparotomia exploradora, procedimento cirúrgico muito invasivo, utilizado para detectar sangramento interno. Disse-me o Cap Ferraz que fora providencial a obtenção de sangue O negativo. Na cirurgia, foi constatada a fratura de um osso da bacia e sanada a hemorragia. Passadas três horas, o oficial de operações da base me informou, por telefone, o pouso de um avião HS-125 da FAB, trazendo o Doutor Antônio Taier, médico residente em São João del Rei e tio do Ten Sade, que desejava falar comigo. Com o apoio da base, o médico se deslocou para o Hospital Roberto Santos. Também fomos para lá, eu e o Cap Ferraz. Após examinar o sobrinho, o Doutor Taier disse que ele deveria fazer uma tomografia computadorizada, exame capaz de gerar imagens precisas dos órgãos internos. Ao saber que o hospital não tinha equipamento para realizar tal exame, o médico disse que iria levá-lo para Belo Horizonte no HS, colocado à sua disposição. O Chefe da UTI informou que não autorizava a saída do paciente do hospital, e que isso só poderia ocorrer mediante termo de responsabilidade a ser assinado pelo Doutor Taier.O Cap Ferraz manifestou-se de maneira idêntica, desaconselhando a retirada do paciente da UTI. O Doutor Taier disse que assinaria o mencionado termo, porque ele transportava acidentados graves de São João del Rei para Belo Horizonte, algumas vezes até em caminhonete, e assim conseguia salvá-los. Diante do impasse, informei ao Doutor Taier que eu tinha sido piloto de HS e, conhecendo o avião, sabia não ser possível a entrada de uma maca com paciente na aeronave. Disse-lhe ainda que, como comandante da base, só permitiria o transporte do Ten Sade em avião da FAB, quando esse transporte fosse autorizado pelo chefe da UTI e pelo Cap Ferraz. Salientei que, tão logo fosse possível, o Ten Sade deveria ir para o Hospital do Galeão, equipado para realizar grandes cirurgias, sendo o transporte feito num avião com UTI a bordo. Contrariado, o Doutor Taier disse que se o Ten Sade piorasse, alguém seria responsabilizado por deixá-lo num hospital sem tomografia computadorizada. Com bons modos, afirmei-lhe que eu seria irresponsável se contrariasse o parecer do chefe da UTI e do comandante do Esquadrão de Saúde. Ele solicitou então a realização de reuniões periódicas para avaliar o estado de saúde do acidentado.No dia seguinte, domingo, participamos dessas reuniões no hospital. A contragosto do Doutor Taier, foi mantida a posição do chefe da UTI e do Cap Ferraz. Na reunião das 18h, um fato modificaria a intenção de remover o paciente. Um médico mineiro, colega do Doutor Taier na Faculdade de Medicina, assumira a chefia da UTI. Ao reencontrá-lo, ele expressou uma grande satisfação e voltou a falar sobre a necessidade de transportar o paciente para Belo Horizonte em razão dos seus ferimentos, cuja dimensão só poderia ser avaliada com precisão por meio da tomografia computadorizada. Além disso, como médico, ele teria livre trânsito na rede hospitalar da capital mineira. Com muita calma, o chefe da UTI concordou com a importância da citada tomografia, salientou que o estado do tenente ainda era grave, citou o fato de ele ter passado por uma cirurgia de grande porte há menos de 24 horas, estando portanto na fase de injúria pós-operatória, não podendo por isso deixar a UTI, e concluiu: “Pense, o seu sobrinho está evoluindo bem e o hospital possui os equipamentos necessários. Colocá-lo agora numa ambulância e depois num avião seria uma grande temeridade”. Convencido, o Doutor Taier disse: “Coronel, desculpe a minha insistência para remover o Marcelo; ele continuará neste hospital. Por isso, em certas situações, um médico não deve ter parente como paciente”. A partir daí, vendo sua atuação como médico competente, passei a admirá-lo. A grandeza de um profissional é medida pelas suas realizações e, também, pela habilidade de modificar as suas condutas e pela humildade em desculpar-se nos momentos certos. Passados quatro dias, liberado pelo hospital e com o aval do comandante do Esquadrão de Saúde, o Ten Sade foi transportado no Boeing 737 da presidência da República para o Hospital do Galeão. As providências que tomei para o transporte ser realizado por um avião com UTI mostrou-se de grande eficiência. Após a decolagem, manifestou-se no paciente uma arritmia cardíaca (ritmo descontrolado dos batimentos cardíacos) que poderia levá-lo a óbito. A rápida ação do médico uteísta e o uso de um desfibrilador sanaram o problema. O Ten Sade ficou hospitalizado durante seis meses, foi submetido a outras cirurgias e voltou a pilotar. Hoje é coronel e presta serviços no Departamento de Controle do Espaço Aéreo (DECEA). Muitos acontecimentos ocorreram desde aquele acidente. A FAB deixou de operar em navio-aeródromo, os aviões P-16 foram desativados e o 1º Grupo de Aviação Embarcada foi extinto. Detentora de um passado grandioso, marcado por feitos memoráveis na Segunda Guerra Mundial, hoje a Base Aérea de Salvador não é mais sede de unidade aérea, embora esteja localizada no meio do extenso litoral brasileiro e seja ponto estratégico da maior importância. Mesmo com todas essas mudanças, e parcialmente destruído, o P-16 7017 continua atuante, está na área de destroços do CENIPA, em Brasília, e serve como auxílio de instrução para o curso de investigadores de acidente aeronáutico. A aviação de patrulha também prossegue altaneira e eficiente, protegendo o espaço aéreo e o imenso mar do Brasil.

Texto do Ten Brig Ar Astor Nina de Carvalho Netto.Fonte: Revista Aeronáutica N⁰309

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